quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Laboratório de Ensino de Filosofia



René Descartes (1596-1650), nascido em La Haye, na região de Touraine na França, e falecido em Estocolmo, na Suécia — onde dava lições de filosofia e de ciências à rainha Cristina —, foi um dos filósofos mais importantes do século XVII, tendo influenciado de forma decisiva a formação e o desenvolvimento do pensamento moderno. Contemporâneo de Galileu, Descartes se considerava não só filósofo, mas também cientista. Grande matemático, destaca-se sua contribuição à geometria, tendo se dedicado também à física e à investigação da natureza humana. Sua obra filosófica adota uma posição dualista acerca da natureza do corpo e da alma, dando forte ênfase à subjetividade na análise do processo do conhecimento e caracterizando-se pelo rigor analítico e argumentativo. Ao mesmo tempo, adota um estilo literário bastante pessoal, destacando-se nesse sentido o texto das Meditações metafísicas, sua obra filosófica mais importante. Descartes considerava um de seus objetivos primordiais a fundamentação da nova ciência natural então nascente, defendendo sua validade diante dos erros da ciência antiga e mostrando a necessidade de se encontrar o verdadeiro método científico que colocasse a ciência no caminho correto para o desenvolvimento do conhecimento, o que se propõe no Discurso do método.


As principais contribuições de Descartes à tradição epistemológica moderna se encontram na adoção da questão da fundamentação da ciência como problema central, dando ênfase à discussão da metodologia científica, bem como em sua geometria algébrica, que abre caminho para a matematização da natureza. A estas se acrescenta sua contribuição no campo da psicologia, pelo desenvolvimento do método introspeccionista, por sua análise da subjetividade e da consciência, e por suas discussões sobre a natureza da mente e de nossos estados mentais.

 
MEDITAÇÕES METAFÍSICAS
Das coisas que se podem colocar em dúvida O texto que se segue apresenta a estratégia de Descartes de refutação do ceticismo, interpretado como a negação da possibilidade do conhecimento. Seu ponto de partida consiste em adotar a posição cética, radicalizando-a e levando-a às suas últimas consequências para então mostrar que é de uma posição insustentável. Trata-se assim de uma refutação por absurdo, isto é, buscando mostrar que a posição do adversário leva ao absurdo. Descartes assume inicialmente as teses centrais do ceticismo, inspirando-se em alguns filósofos da época que haviam retomado a tradição cética grega. Os argumentos que formula são em grande parte derivados de textos dos antigos céticos e de seus seguidores modernos, possivelmente filósofos do século XVI como Francisco Sanchez e Michel de Montaigne. Encontramos aí o questionamento dos sentidos como fonte confiável de conhecimento, o argumento do sonho e da ilusão, que coloca em dúvida nossas impressões sensíveis porque quando sonhamos ou nos iludimos elas parecem verdadeiras, e, finalmente, o que se pode considerar a contribuição de Descartes à argumentação cética, a dúvida hiperbólica, ou exagerada: o argumento do Deus enganador. Descartes imagina um ser todo poderoso que interfere sistematicamente em nosso processo de conhecimento de tal forma que não possamos ter certeza de nada.
1. á já algum tempo eu me apercebi de que, desde meus primeiros anos, recebera muitas falsas opiniões como verdadeiras, e de que aquilo que depois eu fundamentei em princípios tão mal assegurados não podia ser senão muito duvidoso e incerto; de modo que me era necessário tentar seriamente, uma vez em minha vida, desfazer-me de todas as opiniões a que até então dera crédito,e começar tudo novamente desde os fundamentos, se quisesse estabelecer algo de firme e deconstante nas ciências. Mas, parecendo-me ser muito grande essa empresa, aguardei atingir uma idade que fosse tão madura que não pudesse esperar outra após ela, na qual eu estivesse mais apto para executá-la; o que me fez adiá-la por tão longo tempo que doravante acreditaria cometer uma falta se empregasse ainda em deliberar o tempo que me resta para agir.
2. Agora, pois, que meu espírito está livre de todos os cuidados, e que consegui um repouso assegurado numa pacífica solidão, aplicar-me-ei seriamente e com liberdade em destruir em geral todas as minhas antigas opiniões. Ora, não será necessário, para alcançar esse desígnio, provar que todas elas são falsas, o que talvez nunca levasse a cabo; mas, uma vez que a razão já me persuade de que não devo menos cuidadosamente impedir-me de dar crédito às coisas que não são inteiramente certas e indubitáveis do que às que nos parecem manifestamente ser falsas, o menor motivo de dúvida que eu nelas encontrar bastará para me levar a rejeitar todas. E, para isso, não é necessário que examine cada uma em particular, o que seria um trabalho infinito; mas, visto que a ruína dos alicerces carrega necessariamente consigo todo o resto do edifício, dedicar-me-ei inicialmente aos princípios sobre os quais todas as minhas antigas opiniões estavam apoiadas.
3. Tudo o que recebi, até presentemente, como o mais verdadeiro e seguro, aprendi-o dos sentidos ou pelos sentidos: ora, experimentei algumas vezes que esses sentidos eram enganosos, e é de prudência nunca se fiar inteiramente em quem já nos enganou uma vez.
4. Mas, ainda que os sentidos nos enganem às vezes, no que se refere às coisas pouco sensíveis e muito distantes, encontramos talvez muitas outras, das quais não se pode razoavelmente duvidar, embora as conhecêssemos por intermédio deles: por exemplo, que eu esteja aqui, sentado junto ao fogo, vestido com um chambre, tendo este papel entre as mãos e outras coisas desta natureza. E como poderia eu negar que estas mãos e este corpo sejam meus? A não ser talvez que eu me compare a esses insensatos, cujo cérebro está de tal modo perturbado e ofuscado pelos negros vapores da bile que constantemente asseguram que são reis quando são muito pobres; que estão vestidos de ouro e de púrpura quando estão inteiramente nus; ou imaginam ser cântaros ou ter um corpo de vidro. Mas quê? São loucos e eu não seria menos extravagante se me guiasse por seus exemplos.
5. Todavia, devo aqui considerar que sou homem e, por conseguinte, que tenho o costume de dormir e de representar, em meus sonhos, as mesmas coisas, ou algumas vezes menos verossímeis, que esses insensatos em vigília. Quantas vezes ocorreu-me sonhar, durante a noite, que estava neste lugar, que estava vestido, que estava junto ao fogo, embora estivesse inteiramente nu dentro de meu leito? Parece-me agora que não é com olhos adormecidos que contemplo este papel; que esta cabeça que eu mexo não está dormente; que é com desígnio e propósito deliberado que estendo esta mão e que a sinto: o que ocorre no sono não parece ser tão claro nem tão distinto quanto tudo isso.
Mas, pensando cuidadosamente nisso, lembro-me de ter sido muitas vezes enganado, quando dormia, por semelhantes ilusões. E, detendo-me neste pensamento, vejo tão manifestamente que não há quaisquer indícios concludentes, nem marcas assaz certas, por onde se possa distinguir nitidamente a vigília do sono, que me sinto inteiramente pasmado: e meu pasmo é tal que é quase capaz de me persuadir de que estou dormindo.
6. Suponhamos, pois, agora, que estamos adormecidos e que todas essas particularidades, a saber,que abrimos os olhos, que mexemos a cabeça, que estendemos as mãos, e coisas semelhantes, não passam de falsas ilusões; e pensemos que talvez nossas mãos, assim como todo o nosso corpo, não são tais como os vemos. Todavia, é preciso ao menos confessar que as coisas que nos são representadas durante o sono são como quadros e pinturas, que não podem ser formados senão à semelhança de algo real e verdadeiro; e que assim, pelo menos, essas coisas gerais, a saber, olhos, cabeça, mãos e todo o resto do corpo, não são coisas imaginárias, mas verdadeiras e existentes.
Pois, na verdade, os pintores, mesmo quando se empenham com o maior artifício em representar sereias e sátiros por formas estranhas e extraordinárias, não lhes podem, todavia, atribuir formas e naturezas inteiramente novas, mas apenas fazem certa mistura e composição dos membros de
diversos animais; ou então, se porventura sua imaginação for assaz extravagante para inventar algo de tão novo, que jamais tenhamos visto coisa semelhante, e que assim sua obra nos represente uma coisa puramente fictícia e absolutamente falsa, certamente ao menos as cores com que eles a compõem devem ser verdadeiras. […]
9. Todavia, há muito que tenho no meu espírito certa opinião de que há um Deus que tudo pode e por quem fui criado e produzido tal como sou. Ora, quem me poderá assegurar que esse Deus não tenha feito com que não haja nenhuma terra, nenhum céu, nenhum corpo extenso, nenhuma figura, nenhuma grandeza, nenhum lugar e que, não obstante, eu tenha os sentimentos de todas essas coisas e que tudo isso não me pareça existir de maneira diferente daquela que eu vejo? E, mesmo, como julgo que algumas vezes os outros se enganam até nas coisas que eles acreditam saber com maior certeza, pode ocorrer que Deus tenha desejado que eu me engane todas as vezes em que faço a adição de dois mais três, ou em que enumero os lados de um quadrado, ou em que julgo alguma coisa ainda mais fácil, se é que se pode imaginar algo mais fácil do que isso. Mas pode ser que Deus não tenha querido que eu seja decepcionado desta maneira, pois ele é considerado soberanamente bom. Todavia, se repugnasse à sua bondade fazer-me de tal modo que eu me enganasse sempre, pareceria também ser-lhe contrário permitir que eu me engane algumas vezes e, no entanto, não posso duvidar de que ele me permita.
10. Haverá talvez aqui pessoas que preferirão negar a existência de um Deus tão poderoso a acreditar que todas as outras coisas são incertas. Mas não lhes resistamos no momento e suponhamos, em favor delas, que tudo quanto aqui é dito de um Deus seja uma fábula. Todavia, de qualquer maneira que suponham ter eu chegado ao estado e ao ser que possuo, quer o atribuam a algum destino ou fatalidade, quer o refiram ao acaso, quer queiram que isto ocorra por uma contínua série e conexão das coisas, é certo que, já que falhar e enganar-se é uma espécie de imperfeição, quanto menos poderoso for o autor a que atribuírem minha origem, tanto mais será provável que eu seja de tal modo imperfeito que me engane sempre. Razões às quais nada tenho a responder, mas sou obrigado a confessar que, de todas as opiniões que recebi outrora em minha crença como verdadeiras, não há nenhuma da qual não possa duvidar atualmente, não por alguma inconsideração ou leviandade, mas por razões muito fortes e maduramente consideradas: de sorte que é necessário que interrompa e suspenda doravante meu juízo sobre tais pensamentos, e que não mais lhes dê crédito, como faria com as coisas que me parecem evidentemente falsas, se desejo encontrar algo de constante e de seguro nas ciências. […]
12. Suporei, pois, que há não um verdadeiro Deus, que é a soberana fonte da verdade, mas certo gênio maligno, não menos ardiloso e enganador do que poderoso, que empregou toda a suaindústria em enganar-me. Pensarei que o céu, o ar, a terra, as cores, as figuras, os sons e todas as coisas exteriores que vemos são apenas ilusões e enganos de que ele se serve para surpreender minha credulidade. Considerar-me-ei a mim mesmo absolutamente desprovido de mãos, de olhos, de carne, de sangue, desprovido de quaisquer sentidos, mas dotado da falsa crença de ter todas essas coisas. Permanecerei obstinadamente apegado a esse pensamento; e se, por esse meio, não está em meu poder chegar ao conhecimento de qualquer verdade, ao menos está ao meu alcance suspender meu juízo. Eis por que cuidarei zelosamente de não receber em minha crença nenhuma falsidade, e prepararei tão bem meu espírito a todos os ardis desse grande enganador que, por poderoso e ardiloso que seja, nunca poderá impor-me algo.


MEDITAÇÕES METAFÍSICAS
O argumento do cogito - O argumento do cogito é a saída de Descartes para o impasse ao qual o argumento do Deus enganador, visto na passagem anterior, o levara. Se a existência do Deus enganador nos leva a colocar tudo em dúvida, já que não podemos ter certeza de nada, então tudo que nos resta é precisamente a dúvida. Ora, a dúvida é uma forma de pensamento, portanto duvidar é pensar. Isso mostra que a existência do pensamento não pode ser colocada em dúvida, já que duvidar é pensar. Mas, se há o pensamento, há o ser pensante. Este é o sentido fundamental da famosa fórmula “Penso, logo existo” (Discurso do método, IV) ou melhor, “Penso, existo”, como encontramos no texto. A existência do ser pensante é assim, para Descartes, a primeira certeza, a certeza indubitável, uma evidência que resiste a qualquer dúvida cética, até mesmo à mais radical, o argumento do Deus enganador. Contudo, o argumento do cogito apenas prova a existência do ser pensante, que se caracteriza como puro pensamento e não estabelece nenhuma certeza sobre o mundo exterior, sobre o mundo natural, objeto do conhecimento científico pretendido por Descartes e motivo da discussão cética. O ceticismo encontrado na argumentação de Descartes é, por isso mesmo, conhecido como “ceticismo sobre o mundo exterior”, já que formula uma dicotomia entre o mundo interior, a subjetividade, a realidade do ser pensante e o mundo natural, cuja existência permanece em dúvida. No desenvolvimento das Meditações Descartes procurará superar esta dúvida e encontrar um caminho para o mundo exterior.
1. A Meditação que fiz ontem encheu-me o espírito de tantas dúvidas, que doravante não está mais em meu alcance esquecê-las. E, no entanto, não vejo de que maneira poderia resolvê-las; e, como se de súbito tivesse caído em águas muito profundas, estou de tal modo surpreso que não posso nem firmar meus pés no fundo, nem nadar para me manter à tona. Esforçar-me-ei, não obstante, e seguirei novamente a mesma via que trilhei ontem, afastando-me de tudo em que poderia imaginar a menor dúvida, da mesma maneira como se eu soubesse que isto fosse absolutamente falso; e continuarei sempre nesse caminho até que tenha encontrado algo de certo, ou, pelo menos, se outra coisa não me for possível, até que tenha aprendido certamente que não há nada no mundo de certo.
2. Arquimedes, para tirar o globo terrestre de seu lugar e transportá-lo para outra parte, não pedia nada mais exceto um ponto que fosse fixo e seguro. Assim, terei o direito de conceber altas esperanças, se for bastante feliz para encontrar somente uma coisa que seja certa e indubitável.
3. Suponho, portanto, que todas as coisas que vejo são falsas; persuado-me de que nada jamais existiu de tudo quanto minha memória repleta de mentiras me representa; penso não possuir nenhumsentido; creio que o corpo, a figura, a extensão, o movimento e o lugar são apenas ficções de meu espírito. O que poderá, pois, ser considerado verdadeiro? Talvez nenhuma outra coisa a não ser que nada há no mundo de certo.
4. Mas que sei eu, se não há nenhuma outra coisa diferente das que acabo de julgar incertas, da qual não se possa ter a menor dúvida? Não haverá algum Deus, ou alguma outra potência, que me ponha no espírito tais pensamentos? Isso não é necessário; pois talvez seja eu capaz de produzi-los por mim mesmo. Eu então, pelo menos, não serei alguma coisa? Mas já neguei que tivesse qualquer sentido ou qualquer corpo. Hesito no entanto, pois que se segue daí? Serei de tal modo dependente do corpo e dos sentidos que não possa existir sem eles? Mas eu me persuadi de que nada existia no mundo, que não havia nenhum céu, nenhuma terra, espíritos alguns, nem corpos alguns; não me persuadi também, portanto, de que eu não existia? Certamente não, eu existia sem dúvida, se é que eu me persuadi, ou, apenas, pensei alguma coisa. Mas há algum, não sei qual, enganador mui poderoso e mui ardiloso que emprega toda a sua indústria em enganar-me sempre. Não há pois dúvida alguma de que sou, se ele me engana; e, por mais que me engane, não poderá jamais fazer com que eu nada seja, enquanto eu pensar ser alguma coisa. De sorte que, após ter pensado bastante nisto e de ter examinado cuidadosamente todas as coisas, cumpre enfim concluir e ter por constante que esta proposição, eu sou, eu existo, é necessariamente verdadeira, todas as vezes que a enuncio ou que a concebo em meu espírito.
DISCURSO DO MÉTODO
A formação do filósofo - Embora consistindo de uma introdução a três tratados científicos, a Dióptrica, os Meteoros e a Geometria, o texto do Discurso do método tem, inicialmente, um caráter fortemente autobiográfico. Descartes analisa sua formação, questionando a educação tradicional que recebera e defendendo a necessidade de rompermos com o saber adquirido, que naquele momento incluía ainda as teorias escolásticas e a ciência antiga, para pensarmos por nós mesmos. Argumenta em favor da valorização da experiência, mostrando, no entanto, ser necessário que esta seja sempre acompanhada da reflexão, ou seja, de um exame daquilo que a experiência nos revela, avaliando seu sentido e sua validade. O bom senso é a coisa mais comum do mundo: pois cada um pensa ser tão bem provido disso que mesmo os mais difíceis de contentar em tudo o mais não costumam absolutamente desejar mais bom senso do que têm. No que não é verossímil que todos seenganem; antes, isso demonstra que o poder de bem julgar e distinguir o verdadeiro do falso, que é propriamente o que se chama bom senso ou razão, é naturalmente igual em todos os homens; e, assim, que a diversidade de opiniões não decorre de serem alguns mais racionais que outros, mas unicamente do fato de conduzirmos nossos pensamentos por diversas vias e não considerarmos as mesmas coisas. Porque não basta ter um bom espírito, o principal é aplicá-lo bem. As maiores almas são capazes dos maiores vícios, assim como das maiores virtudes; e aqueles que só andam bem lentamente podem avançar muito mais, se seguirem sempre o caminho certo, que aqueles que correm e dele se desviam.
Quanto a mim, nunca supus que meu espírito fosse em nada mais perfeito que o comum; muitas vezes até desejei ter o pensamento tão ágil, a imaginação tão clara e nítida ou a memória tão vasta e atual quanto alguns outros. E não sei de nenhuma qualidade além dessas que sirva à perfeição do espírito: pois quanto à razão ou senso, uma vez que é a única coisa que nos torna homens e nos distingue dos animais, quero crer que exista inteiramente em cada um e seguir nisso a opinião comum dos filósofos, que dizem que só há mais ou menos entre acidentes e de modo algum entre as formas ou naturezas dos indivíduos de uma mesma espécie. Mas não temo dizer que creio ter tido muita felicidade de me haver encontrado desde a juventude em certos caminhos que me conduziram a considerações e máximas com as quais criei um método
através do qual parece que tenho o meio de aumentar gradualmente meu conhecimento e elevá-lo pouco a pouco ao mais alto nível que a mediocridade do meu espírito e a curta duração da minha vida poderão lhe permitir atingir. […] Nutriram-me nas letras desde a infância e, por me haverem persuadido de que por meio delas se poderia adquirir um conhecimento claro e seguro de tudo o que é útil à vida, tinha um desejo extremo de aprendê-las. Mas logo que acabei todo esse curso de estudos, ao fim do qual é costume ser recebido na categoria dos doutos, mudei inteiramente de opinião. Pois me achava tão embaraçado com dúvidas e erros que me pareceu não ter feito mais, ao tratar de me instruir, que descobrir cada vez mais minha ignorância. E no entanto estivera numa das mais famosas escolas da Europa, onde pensava que deviam existir sábios, se é que existiam em algum lugar da terra. Havia aprendido ali tudo o que os outros aprendiam e, não me contentando com as ciências que nos ensinavam, tinha mesmo percorrido todos os livros que me puderam cair nas mãos sobre aquelas consideradas as mais curiosas e raras. Ademais, sabia o juízo que os outros faziam de mim e não achava absolutamente que me considerassem inferior a meus condiscípulos, embora já houvesse entre eles alguns destinados a ocupar o lugar de nossos mestres. E afinal nosso século me parecia tão florescente e tão fértil de bons espíritos quanto nenhum dos precedentes… O que me fez tomar a liberdade de julgar por mim todos os outros e pensar que não havia doutrina no mundo que fosse tal como me levaram anteriormente a desejar. […] Nada direi da filosofia exceto que, vendo que foi cultivada pelos mais excelentes espíritos desde muitos séculos e que mesmo assim ainda não existe aí coisa alguma que não se questione e que não seja por conseguinte duvidosa eu não tinha de modo algum a presunção de esperar encontrar aí mais do que os outros; e que, considerando como pode haver em filosofia opiniões diversas sobre um mesmo assunto sustentadas por pessoas doutas, sem que possa nunca existir a respeito mais de uma que seja verdadeira, reputava quase como falso tudo o que não passava de verossímil. Depois, quanto às outras ciências, na medida em que tomam seus princípios da filosofia, julgava
que nada se podia construir de sólido sobre fundamentos tão pouco firmes. E nem a honra nem o
ganho que prometem eram suficientes para me instigar a aprendê-las, pois de modo algum me sentia, graças a Deus, em situação que me obrigasse a fazer da ciência um ofício para o alívio da minha sorte; e ainda que não fizesse profissão de desprezar cinicamente a glória, dava no entanto muito pouca importância àquela que não poderia de modo algum pensar em alcançar senão indevidamente. E, enfim, pensava já conhecer bastante o que valem as más doutrinas para não estar mais sujeito a me enganar nem com as promessas de um alquimista nem com as previsões de um astrólogo ou as imposturas de um mágico, com os artifícios e bazófia de nenhum desses que fazem profissão de saber mais do que sabem. Foi por isso que, tão logo a idade me permitiu escapar à tutela dos meus preceptores, abandonei inteiramente o estudo das letras. E decidido a não buscar mais outra ciência senão a que poderia encontrar em mim mesmo ou então no grande livro do mundo, aproveitei o resto da minha juventude para viajar, ver cortes e exércitos, frequentar pessoas de diversos humores e condições, recolher diversas experiências, testar a mim mesmo nos desafios que o destino me propunha e fazer sempre reflexão tal sobre as coisas que se apresentavam de modo a poder tirar delas algum proveito. Pois me parecia que poderia encontrar muito mais verdade nos raciocínios que cada um faz sobre os assuntos que lhe importam e cujo resultado deve lhe trazer logo punição se julgou mal do que naqueles que faz um homem de letras no seu gabinete; em especulações que não produzem qualquer efeito e não têm outra consequência senão, talvez, que delas tirará tanto mais vaidade quanto mais afastadas do senso comum, por ter tido que empregar tanto mais espírito e artifício para torná-las verossímeis. E tive sempre um enorme desejo de saber distinguir o verdadeiro do falso, para ter clareza nas minhas ações e avançar com segurança nesta vida.
DISCURSO DO MÉTODO - As regras do método
O texto em que Descartes formula suas regras do método científico, que constituem o centro de sua concepção de ciência, frequentemente causa espanto em quem o lê pela primeira vez, devido ao pequeno número de regras e à sua simplicidade; é este, no entanto, precisamente o objetivo de Descartes. No lugar das regras complexas e intrincadas do método dedutivo aristotélico, da teoria do silogismo — tão discutida na escolástica medieval e motivo de tantas controvérsias —, Descartes prefere as quatro regras simples que formula aqui, mas exige que sejam efetivamente seguidas à risca. Seu argumento é que o método aristotélico, devido a seu formalismo, não evitou que as teorias falsas da Antiguidade, como a concepção geocêntrica de universo, fossem apresentadas como válidas, através da formulação lógica que receberam. As quatro regras do método consistem na regra da evidência, que deve garantir a validade de nossos pontos de partida no processo de investigação científica; a regra da análise, que indica que um problema a ser resolvido deve ser decomposto em suas partes constituintes mais simples; a regra da síntese, que sustenta que uma vez realizada a análise devemos ser capazes de reconstituir aquilo que dividimos, revelando assim um real conhecimento do objeto investigado; e a regra da verificação, que alerta para a necessidade de termos certeza que efetivamente realizamos todos os procedimentos devidos. Estava então na Alemanha, para onde me haviam chamado as guerras que ainda ali não terminaram, e, quando voltava da coroação do Imperador para o exército, o começo do inverno me deteve num lugar onde, não achando conversa que me divertisse e além disso não tendo, felizmente, cuidados ou paixões que me perturbassem, ficava o dia inteiro trancado sozinho num quarto com estufa, onde tinha todo o tempo para me entreter com meus pensamentos. Entre os quais um dos primeiros que me ocorreu foi considerar que muitas vezes não há tanta perfeição nas obras compostas de várias peças e feitas pelas mãos de diversos mestres quanto naquelas em que apenas um trabalhou. Assim, vemos que as construções iniciadas e concluídas por um único arquiteto costumam ser mais belas e bem ordenadas que aquelas que muitos trataram de reformar aproveitando velhas paredes construídas para outros fins. […] Mas, como um homem que caminha sozinho e nas trevas, decidi avançar tão lentamente e ser tão circunspecto em tudo que, se progredia muito pouco, evitava pelo menos cair. Não quis sequer começar rejeitando completamente qualquer das opiniões que se infiltraram outrora em minha crença sem terem sido aí introduzidas pela razão antes de empregar bastante tempo no projeto da obra que empreendia e na busca do verdadeiro método para chegar ao conhecimento de todas as coisas de que o meu espírito fosse capaz. […] E como a multiplicidade de leis fornece muitas vezes desculpas aos vícios, de modo que um Estado é bem mais regrado se, tendo bem poucas, elas são estritamente observadas, assim eu julguei que, em vez do grande número de preceitos de que se compõe a lógica, me bastariam os quatro seguintes, contanto que tomasse a firme e constante resolução de não deixar de observá-los uma vez sequer. O primeiro era não tomar jamais coisa alguma por verdadeira a não ser que a conhecesse evidentemente como tal: quer dizer, evitar cautelosamente a precipitação e a prevenção; e só incluir em meus juízos o que se me apresentasse ao espírito de modo tão claro e nítido que não tivesse como colocá-lo em dúvida.O segundo, dividir cada dificuldade que examinasse em tantas parcelas quantas possíveis enecessárias para melhor resolvê-las. O terceiro, conduzir meus pensamentos de forma ordenada, começando pelos objetos maissimples e mais fáceis de conhecer, para subir pouco a pouco, como por degraus, até o conhecimento dos mais complexos; e supondo mesmo uma ordem entre aqueles que de modo algum precedem naturalmente uns aos outros. E o último, fazer sempre levantamentos tão completos e inspeções tão gerais que tivesse a certeza de nada omitir. Essas longas cadeias de raciocínios, bem simples e fáceis, de que os geômetras costumam se servir para chegar às mais difíceis demonstrações, deram-me a oportunidade de imaginar que todas as coisas que podem cair sob o conhecimento dos homens seguem-se umas às outras da mesma maneira e que, contanto apenas que se evite tomar por verdadeira alguma que não o seja e que se respeite sempre a ordem exigida para deduzir umas das outras, não pode haver nenhuma tão distante que por fim não se alcance nem tão oculta que não se descubra.
DISCURSO DO MÉTODO
A moral provisória - A obra filosófica de Descartes é quase toda ela dedicada à discussão da questão do conhecimento e da possibilidade de fundamentação da ciência. Os demais problemas dependeriam para o seu tratamento de uma solução dessas questões iniciais, que garantiriam assim a validade do método e tornariam essas teorias bem fundamentadas. A questão da moral — a necessidade de termos regras e parâmetros para nossa decisão correta sobre o que fazer, sobre o certo e o errado — não pode, no entanto, permanecer em suspenso até que o problema do conhecimento seja resolvido. Descartes apresenta então regras de uma moral provisória, que devemos adotar até que uma verdadeira ciência da moral, baseada na investigação da natureza humana, seja desenvolvida. E enfim, como não basta, antes de começar a reconstruir a casa onde se mora, fazê-la demolir ou se ocupar a própria pessoa da arquitetura, além de ter cuidadosamente traçado o projeto, mas é preciso também arranjar outra onde comodamente se alojar enquanto durarem os trabalhos, assim eu, para não ficar em absoluto hesitante nas minhas ações enquanto a razão me obrigasse a sê-lo nos meus juízos e para não deixar de viver desde então do modo mais feliz possível, criei para mim uma moral provisória, consistindo somente de três ou quatro máximas, que gostaria de vos expor. A primeira era obedecer às leis e costumes do meu país, respeitando sempre a religião na qual Deus me deu a graça de ser educado desde a infância e me conduzindo em todas as outras coisas segundo as opiniões mais moderadas e mais afastadas do excesso que fossem comumente aceitas na prática pelos mais sensatos dentre aqueles com quem teria que viver. Pois, começando desde então por não considerar minhas próprias opiniões como coisa alguma, pois queria recolocá-las todas em questão, estava seguro de não poder seguir outras melhores que as dos mais sensatos. E ainda que haja talvez gente tão sensata entre os persas ou chineses como entre nós, parecia-me que o mais útil era me comportar segundo aqueles com os quais teria que viver; e que, para saber quais eram verdadeiramente suas opiniões, eu deveria antes prestar atenção no que praticavam do que no que diziam; não apenas porque, com a corrupção dos nossos costumes, haja pouca gente disposta a dizer tudo aquilo em que acredita, mas também porque vários inclusive o ignoram; pois como a ação do pensamento pela qual se acredita numa coisa é diferente daquela pela qual se sabe que se acredita nessa coisa, uma existe com frequência sem a outra. E entre várias opiniões igualmente aceitas eu só escolhia as mais moderadas; tanto porque são sempre as mais cômodas na prática e possivelmente as melhores, costumando todo excesso ser ruim, como também para me desviarmenos do verdadeiro caminho, caso falhasse, do que se, escolhendo um dos extremos, devesse ter seguido o outro. E, particularmente, colocava entre os excessos todas as promessas pelas quais se cerceia a liberdade de alguma coisa. Não que desaprovasse as leis que para remediar a inconstância dos espíritos fracos permitem, quando se tem um bom propósito ou mesmo, para garantia do comércio, um propósito apenas indiferente, que se façam votos ou contratos que obrigam a perseverar nele; mas por não ver no mundo coisa alguma que permanecesse sempre no mesmo estado e, no meu caso particular, prometer aperfeiçoar cada vez mais meus juízos e não em absoluto piorá-los, pensaria estar cometendo uma grande falta contra o bom senso se, pelo fato de antes aprovar alguma coisa, fosse obrigado a tomá-la como boa mesmo depois que talvez tivesse deixado de sê-lo ou quando não mais a considerasse assim. Minha segunda máxima era a de ser o mais firme e o mais decidido possível em minhas ações e de seguir as opiniões as mais duvidosas, uma vez me tivesse resolvido por elas, com a mesma constância que o faria se fossem muito seguras, imitando nisso os viajantes que, vendo-se perdidos numa floresta, não devem ficar dando voltas, a errar de um lado para o outro, e muito menos parar num lugar, mas caminhar sempre o mais reto possível numa mesma direção e não mudá-la de modo algum por motivos frágeis, mesmo que talvez de início apenas o acaso os tenha levado a escolhê- la: porque assim, se não vão exatamente aonde desejam, chegarão pelo menos afinal a algum lugar onde provavelmente estarão melhor que no meio de uma floresta. De forma que, não aceitando comumente as ações da vida nenhuma demora, é verdade bem certa que, se não estiver em nosso poder discernir as opiniões mais verdadeiras, devemos seguir as mais prováveis; e mesmo, ainda que não notemos mais probabilidade numas do que noutras, devemos contudo nos decidir por algumas e considerá-las depois não mais como duvidosas, uma vez que dizem respeito à prática, mas como muito verdadeiras e certas, pois assim se considera a razão que nos fez optar por elas. E isso foi desde então capaz de me livrar de todos os remorsos e arrependimentos que costumam agitar as consciências desses espíritos fracos e vacilantes que se deixam levar com inconstância a praticar, como boas, coisas que julgam mais tarde serem más. Minha terceira máxima era tratar sempre de vencer a mim mesmo e não ao destino, mudando antes meus desejos que a ordem do mundo, e no geral me acostumar a crer que nada está inteiramente em nosso poder além dos nossos pensamentos; de modo que depois de ter dado o melhor de nós em coisas que nos são exteriores, tudo o que deixamos de conseguir é, no que nos diz respeito, absolutamente impossível. E isso já me parecia suficiente para impedir que desejasse no futuro nada que não conseguisse e para ficar dessa forma contente. Pois não se aplicando naturalmente nossa vontade a desejar senão as coisas que nosso entendimento lhe apresenta de alguma forma como possíveis, é certo que, se consideramos todos os bens exteriores a nós como igualmente distantes do nosso poder, não lamentaremos a falta daqueles que parecem devidos ao nosso nascimento, quando formos privados deles sem culpa nossa, mais do que lamentamos não possuir os reinos da China ou do México; e fazendo da necessidade virtude, como se diz, não desejaremos ter saúde estando doentes ou ser livres estando presos, mais do que desejamos atualmente ter corpos de uma matéria tão pouco corruptível quanto o diamante ou asas para voar como os pássaros. Mas admito que é necessário um longo exercício e uma meditação persistente para se acostumar a encarar todas as coisas sob esse ângulo; e creio que era principalmente nisso que consistia o segredo desses filósofos que puderam outrora abstrair-se do império da fortuna e, apesar das dores e da pobreza, disputar felicidade aos seus deuses. Pois, ocupando-se incessantemente em considerar os limites que lhes eram prescritos pela natureza, persuadiam-se de modo tão perfeito que nada estava em seu poder além dos próprios pensamentos que só isso era suficiente para impedi-los de ter qualquer afeição por outras coisas; e dispunham deles de forma tão absoluta que tinham nisso alguma razão de se considerar mais ricos, mais poderosos, mais livres e mais felizes que quaisquer dos outros homens que, não tendo essa filosofia, por mais favorecidos que sejam pela natureza e a fortuna, jamais dispõem assim de tudo o que querem. Por fim, para conclusão dessa moral, decidi fazer um exame das diversas ocupações que têm os homens nesta vida e tentar escolher a melhor; e sem pretender dizer nada das ocupações dos outros, pensei que não podia fazer melhor que continuar naquela mesma em que estava, isto é, empregar toda a minha vida a cultivar a razão e avançar o máximo que pudesse no conhecimento da verdade, seguindo o método que me havia prescrito.



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